OPINIÃO: Por Camila Cortez Cazetta
Tema de constante discussão é a definição do critério adequado para apuração de haveres em caso de rompimento de relação societária, frente às mudanças legislativas e as mudanças no entendimento dos tribunais, bem como em razão da evolução das relações empresariais.
As referidas discussões se tornam ainda mais complexas diante de relações societárias dotadas de características específicas, como é o caso das relações societárias estabelecidas por meio de sociedade de propósito específico voltada à incorporação imobiliária (SPE).
A SPE constituída como sociedade limitada poderá vir a ser afetada por diversos eventos de dissolução parcial, que resultarão na consequente liquidação das quotas sociais, como, por exemplo, nos casos de falecimento (artigo 1.028 Código Civil), falência (artigo 1.030 do Código Civil) e exercício do direito de retirada (artigo 1.029 Código Civil).
Na ocorrência de qualquer um dos citados eventos de dissolução parcial, o Código Civil determina o uso do valor patrimonial contábil como sendo o critério adequado para apuração dos haveres (artigo 1.031), ao passo que o Código de Processo Civil determina o uso do valor patrimonial definido em balanço de determinação, delineado pela avaliação de todos os bens e direitos do ativo, tangível e intangível, bem como do passivo, a preço de saída (art. 606).
A jurisprudência, em litígios envolvendo sociedades limitadas que não contam com propósito específico, reforçou o entendimento quanto à utilização do balanço de determinação, excluindo o uso conjunto do critério de fluxo de caixa descontado (STJ. REsp. nº 1.877.331/SP e TJ-SP. Ap. Cível nº 1000712-41.2015.8.26.0068).
Mais especificamente, o entendimento dos tribunais é que o balanço de determinação possibilita auferir o verdadeiro valor patrimonial das quotas sociais, excluindo a aplicação conjunta da metodologia do fluxo de caixa descontado, visto ser utilizado como ferramenta de gestão para a tomada de decisões acerca de novos investimentos e negociações.
Analisando litígios específicos envolvendo SPE, não foi identificado a definição de qual critério de apuração de haveres seria o adequado, apenas foi identificado a análise da não admissibilidade (TJ-SP. 1ª Câmara de Direito Empresarial. Ap. 1106762-92.2015.8.26.0100 e TJ-SP. 2ª Câmara de Direito Empresarial. Ap. 1137641-48.2016.8.26.0100), ou da admissibilidade do exercício do direito de retirada, neste último caso em razão de acordo entre as partes ou em razão de justa causa, mas sem a continuidade do curso do processo à referida apuração (TJ-RJ. 4ª Vara Cível. Processo 0002780-15.2019.8.19.0042, TJ-SP. 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Agravo de Instrumento nº 2122704-15.2022.8.26.0000). Também não foi identificado casos envolvendo outras das hipóteses de dissolução parcial que não decorram da mera vontade de um dos sócios.
Indo mais adiante, e imaginando que nos referidos litígios os processos avancem à fase de apuração dos haveres, questiona-se se faria sentido utilizar o balanço de determinação considerando as características específicas da SPE, sendo a principal delas a delimitação de seu objeto social, o qual será restrito a execução e desenvolvimento de um único e singular projeto, pautado em planejamentos e estudos específicos.
Outra característica da SPE é a delimitação do seu prazo de duração, que será idêntico ao tempo necessário para o desenvolvimento e conclusão do respectivo projeto imobiliário e do cumprimento de todas as obrigações sociais. Deste modo, apesar de o planejamento ser o mais completo que possa vir a ser, poderá advir fatores externos que venham a afetar o prazo estimado para a conclusão do projeto inicialmente desenhado, como, por exemplo, desaquecimento do mercado, aumento da inflação e juros, greves e paralisações, escassez de produtos, o que afetaria, consequentemente, o prazo de duração da sociedade, o qual será determinado, mas subordinado a termo incerto (conceito diferente de prazo indeterminado ou prazo determinado, disciplinados no artigo 1.029 do Código Civil).
Já a terceira característica da SPE seria o momento da apuração de seus resultados, a qual, diferentemente das demais sociedades, cujos resultados, em regra, poderão ser apurados periodicamente, visto que as suas atividades se prolongam no tempo, os resultados da SPE somente serão apurados em momento futuro e incerto, após o regular e integral encerramento do seu objeto social.
Frente às referidas características, a aplicação do balanço de determinação levaria a avaliação atual de todos os ativos e passivos da SPE, sem considerar eventuais fatores externos que poderiam vir a assolar a sociedade, como, além dos citados acima: (1) a não realização das vendas estimadas, (2) a apresentação de pedidos de rescisão contratual com a retomada da unidade e devolução do preço, e (3) os atrasos nas obras e reduções no preço de venda das unidades autônomas, eventos que poderiam aumentar o custo de manutenção da sociedade, o que poderia gerar o enriquecimento do sócio que está saindo, ou até mesmo o enfraquecimento da preservação da SPE, a qual comprometeria seu caixa e a execução de suas atividades, para liquidar os haveres que vierem a ser devidos ao sócio retirante.
Ademais, a aplicação do balanço de determinação poderia vir a representar exatamente o que os tribunais têm pretendido evitar: (1) desestímulo ao cumprimento dos deveres dos sócios minoritários; (2) incentivo ao exercício do direito de retirada, em prejuízo da estabilidade das empresas; e (3) enriquecimento indevido do sócio desligado em detrimento daqueles que permanecem na sociedade. Por estas, e diversas outras razões, deve-se reforçar o permissivo legal de os sócios, como maiores conhecedores do negócio, definirem o melhor critério de apuração de haveres (TJ-SP. Ap. Cível nº 1011419-79.2019.8.26.0019 e TJ-SP. Ap. Cível nº 1020238-63.2013.8.26.0100, acrescentando, aqui, o alcance para outros critérios que não apenas o balanço de determinação).
Por outro lado, o uso do fluxo de caixa descontado, apesar de avaliar a projeção de resultados futuros da sociedade, o que, de um lado, seria ilógico de ser aplicado ao sócio retirante, permitiria, por outro lado, mediante a aplicação da adequada taxa de desconto, considerando as diversas nuances relacionadas ao caso concreto, dependendo, inclusive, do estágio de desenvolvimento do projeto imobiliário, aproximar-se ao critério de apuração de haveres mais adequado às SPEs (funcionando, de fato, como forma de avaliação para negociação da empresa, a qual apresenta atividade inacabada, condicionada a evento futuro e incerto e suscetível a diversos fatores externos). Nessa mesma linha, até mesmo o uso do balanço de determinação, mas com a aplicação de uma adequada taxa de desconto, conforme exposto anteriormente, também poderia aproximar-se como o adequado às SPEs.
Por todo o exposto e de maneira geral, a aplicação de um único critério de apuração de haveres, ou o descarte de um dos possíveis métodos de avaliação, pode se mostrar impraticável frente ao grande leque de negócios.
As diversas discussões que poderiam surgir sobre o assunto aqui proposto poderão ser minimizadas mediante a prévia definição das regras que regularão a relação societária a ser estabelecida por meio da SPE, como, por exemplo: (1) prazo mínimo de permanência no quadro societário; (2) condições de pagamento dos haveres; e (3) critérios e condições de apuração de haveres para cada hipótese de dissolução parcial, acompanhado das respectivas fundamentações e justificativas.
Saiba mais:
Revista Consultor Jurídico, 17 de outubro de 2023, 15h19
https://www.conjur.com.br/2023-out-17/camila-cazetta-apuracao-haveres-incorporacao-imobiliaria
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